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Contra o silêncio: Uma meditação sobre o Kosovo

Otermo djak em albanês significa “sangue”. É de sua raiz que a cidade de Djakova deriva seu nome, embora Julie não se lembre do porquê. Talvez algo que tenha a ver com a degola de ovelhas, diz ela.

Há quatro pessoas no carro: Julie, uma tradutora da Organização Internacional de Migração; seu marido, um professor de ciências do segundo grau; o filho de 16 anos e eu.

Eles estão viajando para Djavoka a fim de visitar o lar de infância de Julie. Eu estou indo a Djavoka em busca de respostas para um enigma chamado de “limpeza étnica”, para o mistério do sofrimento humano.

A estrada, para os albaneses do Kosovo, está repleta de amargas lembranças, com histórias tenebrosas que ferem todas as vezes que são contadas. Da estrada principal para Pristina, devemos ir primeiro para o norte, passando por Raças. Se você olhar pela janela, à esquerda, notará montículos de terra solta ao lado de uma colina, os quais estão cobertos de grinaldas e encimados com placas retangulares de madeira.

Numa floresta, não longe daqui, no dia 15 de janeiro de 1999, as forças de segurança da Sérvia massacraram 45 civis albaneses desarmados. Entre eles estavam duas crianças, uma mulher e dezenas de velhos. Um pouco além de Raças, a estrada serpenteia para trás em direção sudoeste. Casas e fazendas queimadas pontilham o panorama. Um recenseamento das Nações Unidas de 1.500 vilas do Kosovo, feito dois meses após a guerra, revelou que mais de 78.000 casas foram seriamente danificadas ou completamente destruídas.

Como um ato final de malvadez, os soldados em retirada pintaram obscenidades e epitáfios em grandes letras negras sobre as paredes dos edifícios destruídos. Shiftari é uma das favoritas. Significa “kike” (termo pejorativo para designar um judeu), e também “kaffir (infiel); ou “spic” (pejorativo para hispânicos), ou ainda “nigger” (pejorativo para negros). Ele significa “albanês”.

Quando a guerra findou, Julie contou-me enquanto viajávamos, que seu marido voltou para o Kosovo enquanto ela ficou em Stankovic, um campo de refugiados macedônios. Logo ele lhe enviou uma mensagem urgente: Ela não devia vir para casa. Não agora. Milicianos haviam usado sua casa como caserna. Ele não queria que ela visse as palavras deixadas sobre as paredes, ou os gatos mortos no quarto, ou ainda sentir o cheiro de excremento sobre os carpetes.

Contudo, isso não era o pior. Os carpetes podem ser lavados e as palavras não explodem em seu rosto.

Quando Ram Sulejman, de 18 anos, voltou para sua casa em Klina depois da guerra, não havia obscenidades nas paredes. Tudo estava intacto. Ele era um dos felizardos. Quando foi abrir a porta, uma mina detonou.

Seu melhor amigo, Kushtrim, contou-me a respeito dele enquanto varria os cacos de vidros em Pristina. Ele procurava conter as lágrimas. “Você devia ver meu amigo”, disse ele. “Ele era tão bonito, tão forte. Por que fizeram isso? Por quê? Odeio esta guerra. Você não compreende — eu odeio esta guerra.”

Não é só a guerra que dói. O ataque ao Kosovo começou há mais ou menos uma década, quando o governo iugoslavo em Belgrado estabeleceu novas políticas repressivas na região. Essas leis equivaliam a uma degradação sistemática da vida social, cultural e política albanesa.

Julie, apontando para a escarpa erodida de uma montanha pela qual passávamos, disse-me que foi então que eles começaram a devastar as florestas. As colinas, que outrora estavam densamente cobertas de árvores, foram então levadas para as serrarias na Sérvia, deixando para trás uma desértica paisagem de arbustos e pedra.

Como ocorre tanto em Kosovo, a história aqui jaz no que está ausente e não no que está presente; naquilo que desapareceu mais do que no que se vê. Tome por exemplo os hospitais onde os medicamentos e o instrumental médico foram saqueados; ou as mesquitas que foram queimadas. Também as lojas e o comércio que desapareceram em fumaça; os animais das fazendas sumiram, os documentos legais se desvaneceram e as posses pessoais não puderam ser mais localizadas. E as pessoas que nunca mais puderam ser vistas.

Investigadores de crimes de guerra calculam que aproximadamente 10 mil albaneses kosovares foram mortos durante o conflito. Numa nação de menos de dois milhões de habitantes, ainda ligados por laços familiares e comunitários, há poucas pessoas na região que não conhecem o nome de alguém entre os mortos.

Depois de passadas as montanhas, a estrada para Djakova deriva para o oeste, e torna-se quase retilínea. Viajamos em silêncio até cruzar o Rio Erenik. Julie sorri ao recordar dos verões de sua infância gastos nadando e pescando aqui. Então, um pouco mais adiante, sobre uma colina baixa, ao descermos para a enseada, eis Djakova.

A primeira vista que o saúda quando você entra na cidade é a de uma delegacia. É um edifício maciço de quatro andares que agora tem rombos de todos os lados, obra dos mísseis da OTAN. Chapas de concreto destroçadas pendem no ar presas por emaranhados de ferro. Documentos abandonados e carbonizados jazem espalhados no pátio ao redor.

Julie se encurva ao passarmos. Ela conta dos gritos que costumavam vir desse edifício no meio da noite, e das roupas encharcadas de sangue, dos instrumentos estranhos que foram descobertos aqui depois da retirada do exército sérvio. Abrimos caminho lentamente pela principal rua da cidade. A destruição, ao longo dessa estrada, parece arbitrária e sem propósito; alguns edifícios não foram tocados, enquanto outros foram reduzidos a entulho. Qual foi o processo de seleção? Qual foi o método? Como os criminosos decidiram onde descarregar seu ódio? Isso os satisfez? Foi seu ódio satisfeito com mais ódio?

Luljeta Fajzaj, uma enfermeira de 20 anos da vila de Radvaç, contou-me de um colega de estudo, Afrim Gjuraj, cujo corpo foi descoberto com 82 perfurações de bala.

Eu gostaria de perguntar a alguém que provavelmente ainda vive em algum lugar dos Balcãs, o que conseguem 82 balas realizar? Que estaria ele pensando depois da segunda bala? Que estava ele pensando depois da décima bala? e depois da outra? e da outra?

Tragicamente, os tiroteios e incêndios continuam. Os albaneses, resolvidos a vingar-se, têm devolvido terra arrasada por terra arrasada, destruindo casas de sérvios e igrejas ortodoxas, aterrorizando a minoria sérvia e a população cigana que ainda resta na região, com lançamentos de granadas à noite e execuções sumárias nos campos durante o dia.

Na fronteira entre o Kosovo e a Macedônia, um menino cigano fugindo de sua terra, junto com mais de 250 moradores de sua vila, mostra-me a cicatriz em seu rosto, uma lembrança infeliz de sua terra natal deixada por franco-atiradores albaneses. Ou, talvez, uma lembrança feliz; umas poucas polegadas para a direita e o menino não estaria ali diante de mim.

Certa vez, bem tarde da noite, observei uma casa sérvia queimar na cidade de Ferizaj. O papel na parede formava bolhas antes de pegar fogo. Grandes fragmentos do forro caíam no interior de tempos em tempos, pontilhando a cena com estampidos e faíscas chiantes.

Tanto os ocupantes como os incendiários tinham fugido há muito, deixando atrás de si uma multidão de crianças que dançavam alegremente sob a luz sinistra do fogo. “OTAN, OTAN”, elas cantavam, e “UCK, UCK” — o acrônimo do exército popular de libertação do Kosovo. Homens e mulheres albaneses olhavam de longe, impassíveis, tolerantes.

Então o vento mudou. O fogo, que até aquele ponto tinha subido sem perigo em direção ao céu, moveu-se horizontalmente, lambendo os beirais de uma casa vizinha, residência de um albanês étnico. Quando o edifício seguinte começou a arder, a gente da cidade correu com baldes e mangueiras. O grupo de crianças, sem se dar conta do que se passava, continuaram a cantar: “OTAN, OTAN, UCK, UCK!”.

Enquanto eu observava esse espetáculo surrealista, devo confessar que senti um forte desejo de ver o fogo consumir ambas as casas. Talvez, pensei, isso convenceria os albaneses que combatiam o fogo — alguns deles meus companheiros de trabalho e amigos — da inutilidade da vingança que se destrói a si mesma, não importa que atrocidades suportaram. O fogo, porém, foi contido, e a brigada de bombeiros voluntários pôs de lado suas mangueiras para esperar a casa sérvia acabar de queimar.

Voltei para o apartamento em que morava. Passei por casas ainda habitadas por sérvios que não tinham para onde fugir; uma delas era o lar de um velho acamado que recebia pão e leite, uma vez por semana, dos serviços comunitários da ADRA; outra, de uma vovó que me dava um buquê de flores sempre que eu a visitava. Há cerca de 40 sérvios idosos morando em Ferizaj, as vítimas mais recentes de um aparentemente infindável ciclo de ódio.

Em Djakova, Julie e eu chegamos afinal à periferia de um velho bairro da cidade. A rua está fechada com tambores de óleo e pranchas de madeira; assim saímos do carro e começamos a andar enquanto o marido de Julie procurava um desvio. Estamos na vizinhança onde Julie cresceu e numa das zonas mais devastadas do Kosovo. Os edifícios aqui datam do século 14. Foram construídos no estilo clássico da arquitetura turca, durante o Império Otomano e eram apreciados pelos albaneses como marcos históricos e culturais.

Ao andarmos por entre as ruínas, Julie atua como minha guia turística. Esta era uma excelente padaria. Ali ficava a joalheria. Aqui morava uma costureira que fazia um belo trabalho.

Se você pára a fim de examinar o conteúdo do entulho, pode muitas vezes decifrar a ocupação dos proprietários de lojas. Uma pilha está repleta de relógios carbonizados — um relojoeiro. Outra revela garrafas de vidro cuja fusão conferiu-lhes formas sinuosas — um restaurante. Escarafunchando pelos artefatos arruinados, descubro uma frágil xícara de chá, por alguma razão perfeitamente intacta, um fragmento de civilidade salvo das chamas.

No coração do velho mercado, flanqueado de todos os lados por ruínas, ergue-se uma mesquita medieval do século 15. Seu minarete foi parcialmente destruído quando o exército sérvio usou-o para prática de artilharia. Os soldados, não podendo forçar as portas maciças, puseram fogo à entrada de madeira, embora as labaredas não tenham alcançado o santuário.

Enquanto avançávamos pelo soalho queimado, um objeto atraiu minha atenção. Tratava-se de um discreto fragmento carbonizado que poderia deixar de ser notado entre as peças mais salientes das ruínas. Não obstante, quando meu olhar pousou sobre ela, senti uma fascinação tanto em minha imaginação como em minha consciência. Era um prego de aproximadamente uns 15cm de comprimento, todo enferrujado, levemente recurvo no meio e afilado em traiçoeira ponta. Era feito à mão — um dos artefatos originais do edifício com, pelo menos, 500 anos de idade, Julie me disse — obra de um ferreiro medieval.

O que ela não fazia idéia era que, para mim, em certo sentido, ele era muito antigo. Enquanto eu revolvia o prego na palma da mão, fui impressionado por um pensamento pungente: Não teria sido esse, exatamente esse, aquele que fincou Jesus na cruz? Não teria sido esse, exatamente esse, que dilacerou as mãos e o coração de Deus?

Onde podemos encontrar o sofrimento do Senhor do Universo se não no padecimento de nossos semelhantes? Em Julie, em Luljeta, em Afrim, em Ram, em Kushtrim e em muitos como eles.

Na queima de seus lares e lojas; na tortura, estupro e assassinato de inocentes; e mesmo na destruição de suas casas de culto, suas mesquitas e minaretes?

Como seguidores de Jesus, vivendo nos estertores do mais sangrento século da história terrestre, somos confrontados hoje com uma escolha urgente: Podemos ainda permanecer impassíveis em face das atrocidades contra os direitos humanos, ou falar e agir em defesa da imagem do Criador expressa naqueles que não podem defender a si mesmos.

Podemos tornar nossos ouvidos surdos e nosso coração em pedra diante do clamor dos sofredores, ou estender a mão, tanto quanto esteja ao nosso alcance, àqueles que, por entre suas feridas, nos dão a oportunidade de aliviar o sofrimento do crucificado Salvador do mundo.

Não foi isso que Jesus quis dizer quando declarou: “Em verdade, em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes Meus irmãos... a Mim os fizestes”? (Mateus 25:40)

Ron Osborn, em 1999, despendeu cinco meses como prestador de serviços humanitários no Kosovo com a Adventist Development and Relief Agency (Agência de Desenvolvimento de Recursos Assistenciais — ADRA) e a International Medical Corps (Corpo Médico Internacional). Presentemente ele está se graduando em literatura inglesa. Osborn pode ser contatado através de seu e-mail: ronaldosborn138@cs.com


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