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Quão Confiavel é a Bíblia?

A autoridade do cristianismo deriva da Palavra de Deus. Cristo e Seus apóstolos consideravam as Escrituras como a revelação de Deus, com uma unidade fundamental entre seus vários ensinos (ver Mateus 5:17-20; Lucas 24:27, 44, 45-48; João 5:39). Muitos pais da igreja e os grandes reformadores protestantes do século 16 enalteciam a unidade e a confiabilidade das Escrituras.

Todavia, sob a forte influência do criticismo histórico do Iluminismo do século 18, um número considerável de teólogos e cristãos passou a considerar a Bíblia como mero produto das antigas culturas dentro das quais foi concebida. Conseqüentemente, a Bíblia não é mais considerada como consistente e harmônica em seus variados ensinos, e sim como uma coleção de diferentes fontes com contradições internas. Outro golpe contra a autoridade e unidade das Escrituras foi desferido na segunda metade do século 20, pelo ataque furioso do pós-modernismo. A nova tendência é enfatizar, não o verdadeiro significado das Escrituras, mas os vários sentidos a ela atribuídos pelos seus leitores.

Já os adventistas do sétimo dia, por sua vez, continuam enfatizando a unidade, a autoridade e a confiabilidade das Escrituras. Mas para manter tal convicção, o estudante bíblico deve achar respostas honestas para as quatro seguintes questões: 1) Que base existe para se falar de harmonia nas Escrituras? 2) Como tratamos algumas das principais áreas nas quais tal harmonia nem sempre é evidente? 3) Como o milagre da inspiração preservou a unidade da Palavra de Deus? e 4) Qual o papel do Espírito Santo em nos ajudar a reconhecer essa unidade?

Harmonia interna das Escrituras

Nessa área precisamos considerar pelo menos duas questões fundamentais: Primeira, o relacionamento entre a Palavra de Deus e as culturas contemporâneas nas quais ela foi originalmente transmitida. Nas Escrituras, pode-se perceber facilmente um constante diálogo entre princípios universais e as aplicações específicas desses princípios, dentro de um contexto cultural particular. Tal percepção não pode ser considerada como condicionamentos culturais que distorcem a unidade básica da Palavra de Deus, mas precisamente o oposto: princípios universais que transcendem qualquer cultura específica.

Por exemplo, a Bíblia menciona várias ocasiões nas quais Deus tolerou certos desvios humanos de Seus planos originais, como nos casos de poligamia (ver Gênesis 16:1-15; 29:15-30:24, etc.) e divórcio (ver Mateus 19:3-12; Marcos 10:2-12). Existem outras conjunturas onde os primeiros cristãos foram aconselhados a respeitar certos elementos culturais específicos, como no caso respeitante às mulheres usarem véu ao orar ou profetizar (I Coríntios 11:2-16), e permanecer caladas na igreja (I Coríntios 14:34-35). Mas o teor geral das Escrituras é que sua religião deve transcender e transformar o contexto cultural.

G. Ernest Wright explica que “o Antigo Testamento dá eloqüente testemunho de que a religião cananita era o agente desintegrador mais perigoso que a fé de Israel tinha de enfrentar” (ver Deuteronômio 7:1-6).1 Floyd V. Filson acrescenta que no primeiro século d.C. os judeus, e posteriormente os judaizantes, “reconheciam o fato de que o Evangelho era algo diferente das mensagens religiosas que haviam conhecido”, e que “isso estava rompendo com os limites do judaísmo contemporâneo” (ver Mateus 5:20).2

A segunda questão que deve ser considerada por aqueles que estão interessados em compreender a unidade das Escrituras, é a perspectiva metodológica pela qual se investiga as Escrituras. Do próprio testemunho das Escrituras percebe-se que a Bíblia está mais próxima do mundo oriental, a partir de uma perspectiva mais sistêmica e integral da realidade, do que do mundo ocidental, com uma perspectiva mais analítica e compartimentalizada. Esse é um importante aspecto a ser levado em consideração ao definirmos nossa abordagem metodológica das Escrituras.

Se começarmos olhando indutivamente em busca de divergências nas Escrituras, acabaremos “encontrando diferenças em vez de harmonia e unidade”. Se, por outro lado, principiarmos olhando dedutivamente, poderemos descobrir uma unidade básica que integra suas várias partes.3 Muitas inconsistências aparentes podem ser harmonizadas se avançarmos das grandes molduras temáticas das Escrituras para os detalhes menores, em vez de iniciarmos por esses pormenores e desconhecermos as estruturas básicas às quais pertencem.

Áreas problemáticas

Existem, porém, algumas áreas importantes de supostas “inconsistências” internas da Bíblia, que as pessoas usam freqüentemente para solapar o conceito de sua unidade. Consideremos brevemente cinco dessas áreas e vejamos como esses problemas podem ser solucionados.

Tensões entre o Antigo e o Novo Testamentos. Algumas pessoas falam a respeito de várias tensões dicotômicas entre o Antigo e o Novo Testamentos, referindo-se a tópicos como a justiça de Deus versus Seu amor e a obediência à lei versus salvação pela graça. Essas tensões podem ser solvidas se reconhecermos claramente o relacionamento tipológico entre ambos os Testamentos, e que justiça e amor, lei e graça, são conceitos desenvolvidos ao longo de ambos os Testamentos.

Salmos imprecatórios. Alguns vêem os salmos imprecatórios, com suas orações de vingança e maldição aos ímpios (ver Salmos 35; 58, 69; 109; 137, etc.), como em direta oposição às amorosas orações de Cristo e de Estêvão em favor dos seus inimigos (Lucas 23:34; Atos 7:60). Na tentativa de solucionar esse problema, não devemos nos esquecer de que o Novo Testamento cita os salmos imprecatórios como inspirados e autorizados, e que no Antigo Testamento os inimigos do povo do concerto eram considerados inimigos do próprio Deus. Parece bastante evidente, portanto, que esses salmos devem ser compreendidos dentro da moldura teológica da teocracia do Antigo Testamento.

Problemas sinópticos. Provavelmente nenhuma outra área tem gerado tanta controvérsia em relação à unidade da Palavra de Deus, como o chamado problema sinóptico. Jamais conseguiremos explicar plenamente como os primeiros três Evangelhos (Mateus, Marcos e Lucas) foram escritos; qual foi realmente a dependência de um para com o outro e como harmonizar algumas pequenas discrepâncias nos relatos paralelos. Robert K. McIver afirma em The Four Faces of Jesus que “não existe razão para se supor que as informações trazidas à luz por uma acurada investigação do problema sinóptico, provejam qualquer base para se duvidar da historicidade fundamental dos eventos mencionados nos Evangelhos. Em realidade, elas provavelmente comprovam o oposto, sendo uma evidência da sua confiabilidade.”4

A justificação em Paulo e Tiago. Outra área problemática que nem sempre tem sido compreendida claramente por algumas pessoas, é a clássica tensão entre a declaração de Paulo de que “o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei” (Romanos 3:28), e as palavras de Tiago de que “uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente” (Tiago 2:24). Mas essa tensão pode ser solucionada se tivermos em mente que enquanto Paulo está respondendo ao uso legalístico das “obras da lei” como meio de salvação (Romanos 3:20; cf. 3:31; 7:12), Tiago está criticando a profissão antinominiana de uma fé “morta”, tão destituída de frutos como a fé descomprometida dos demônios (Tiago 2:17, 19).

Erros fatuais. Existem aqueles que negam a unidade básica da Palavra de Deus porque, pensa eles, ela contém um grande número dos chamados “erros fatuais”. Muitos desses supostos “erros” não são realmente erros, mas apenas falta de compreensão das verdadeiras questões envolvidas. Um exemplo disso é a maneira como Edwin R. Thiele demonstrou que muitas das pretensas lacunas e discrepâncias na cronologia bíblica dos reis de Israel e Judá podiam ser sincronizadas.5 Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que não temos condições de solucionar todas as dificuldades das Escrituras.6

A despeito da existência de algumas imprecisões em detalhes insignificantes, existem evidências suficientes que demonstram que tais inexatidões não distorcem o conceito básico comunicado pelo texto no qual aparecem, e não rompem a unidade básica da Palavra de Deus.

Não obstante, alguns podem indagar: Por que Deus permitiu que esses problemas permanecessem nas Escrituras? Não poderia ter Ele corrigido alguns deles, de modo que nossa compreensão fosse mais fácil? Essas não são perguntas fáceis de responder, mas creio que existam algumas razões importantes pelas quais Deus não solucionou essas áreas problemáticas.

Devemos reconhecer que Deus confiou Sua mensagem a seres humanos – “vasos de barro” (II Coríntios 4:7) – e esses, por sua vez, a transmitiram em sua linguagem imperfeita. Além disso, a Palavra de Deus destinava-se a servir como uma “luz” para o caminho (Salmo 119:105) dos seres humanos de todas as épocas e lugares. Na qualidade de “pão” espiritual (Mateus 4:4) que testifica do “pão vivo que desceu do céu” (João 6:51), a Bíblia deveria falar a ricos e pobres, cultos e incultos, no contexto em que eles viviam.

Se a Bíblia fosse um livro de “uniformidade monótona”, as pessoas a leriam uma ou duas vezes e então a colocariam de lado como fazem com os jornais velhos. Mas a Bíblia possui uma profunda, “rica e colorida diversidade de testemunhos harmoniosos, todos eles revelando uma beleza rara e distinta”, que a tornam tão atrativa.7 Embora sua mensagem essencial seja perfeitamente compreensível, mesmo às pessoas comuns, a Bíblia possui tal profundidade de pensamento que todos os eruditos e pessoas simples que a estudaram ao longo dos séculos, não foram capazes de esgotar o seu significado e de solver todas as suas dificuldades.

O milagre da inspiração

Mas como o milagre da inspiração salvaguardou a unidade da Palavra de Deus? Até que ponto podemos esperar harmonia dentro das Escrituras? Deveríamos supor, como algumas pessoas fazem, que a Bíblia é confiável apenas em questões de salvação? Podemos isolar as partes cronológicas, históricas e científicas da Escritura de seu propósito salvífico geral?

Como argumentei em outro artigo, a Bíblia reivindica para si uma natureza integral e abrangente, formando uma unidade indivisível (Mateus 4:4; Apocalipse 22:18, 19), e apontando para a salvação como seu objetivo (João 20:31; I Coríntios 10:11). Além disso, a Escritura descreve a salvação como uma ampla realidade histórica, relacionada a todos os demais temas bíblicos. E é precisamente esse inter-relacionamento temático geral que torna quase impossível para alguém falar da Bíblia em termos dicotômicos, como confiável em alguns tópicos e não em outros.

“Uma vez que o propósito primário da Bíblia é desenvolver fé para a salvação (João 20:31), suas seções históricas, biográficas e científicas provêem, muitas vezes, apenas as informações específicas necessárias para atingir esse propósito (João 20:30; 21:25). Apesar de sua seletividade em algumas áreas do conhecimento humano, isso não significa que as Escrituras não sejam dignas de todo o crédito nessas áreas.” “Toda a Escritura é inspirada por Deus” (II Timóteo 3:16) e nossa compreensão de inspiração deveria sempre preservar esse escopo abarcante.8

Sem endossar a infalibidade calvinista, temos razões suficientes para crer que a Bíblia é infalível em seu propósito salvífico e confiável em seu completo inter-relacionamento temático. De acordo com T. H. Jemison, nas Escrituras “existe unidade em seu tema – Jesus Cristo, Sua cruz e Sua coroa. Existe completa harmonia de ensinamentos – as doutrinas do Antigo Testamento e as do Novo são as mesmas. Existe unidade de desenvolvimento – uma constante progressão desde a criação e a queda, até a redenção e a restauração final. Existe unidade na coordenação das profecias.”9

A atuação do Espírito Santo

A unidade subjacente da Palavra de Deus foi gerada pela direta atuação do Espírito Santo na produção das Escrituras. Paulo afirma em II Timóteo 3:16 que “toda a Escritura é inspirada por Deus”. Pedro acrescenta que “nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (II Pedro 1:20, 21).

Uma vez que foi o Espírito Santo quem gerou a unidade da Palavra de Deus, apenas Ele pode iluminar nossa mente para percebermos a coesão que sustenta a Bíblia. Cristo prometeu aos Seus discípulos que o Espírito Santo viria para guiá-los “a toda a verdade” (João 16:13). Paulo declara que “o Espírito Santo ensina, comparando coisas espirituais com espirituais” (I Coríntios 2:13, NKJV).

Conclusão

Hoje, lamentavelmente, muitos cristãos perderam sua confiança nas Escrituras e as estão relendo da perspectiva de suas próprias tradições (tradicionalistas), da razão (racionalistas), da experiência pessoal (existencialistas), e mesmo da cultura moderna (culturalistas). Cansados da aridez de tais ideologias humanas, muitos outros estão buscando um fundamento mais firme sobre o qual ancorar a sua fé.

Mas se a nossa âncora está firmada na própria Palavra, crendo que o seu testemunho não é o resultado de invenções humanas, mas um dom divino para revelar Deus e o Seu amor redentivo à humanidade, então não temos nada a temer ou a perder. O Espírito Santo que gerou a origem, a unidade e a autoridade da Palavra, pode também iluminar a nossa mente para reconhecermo-la como tal. Teorias humanas podem surgir e desaparecer (ver Efésios 4:14), mas “a palavra de nosso Deus permanece eternamente” (Isaías 40:8).

Alberto R. Timm (Ph.D. pela Andrews University) é professor de Teologia Histórica no Centro Universitário Adventista de São Paulo, Campus 2, e dirige o Centro de Pesquisas Ellen G. White do Brasil. Seu endereço: Caixa Postal 11; Engenheiro Coelho, SP 13.165-970; Brasil. E-mail: atimm@unasp.br

Notas e referências

1.   Ernest Wright, The Old Testament Against Its Environment (Chicago: Henry Regnery, 1950), p. 13.

2.   Floyd V. Filson, The New Testament Against Its Environment (London: SCM Press, 1950), p. 96.

3.   Ekkehardt Mueller, “The Revelation, Inspiration, and Authority of Scripture,” Ministry (April 2000) pp. 22, 23.

4.   Robert K. McIver, The Four Faces of Jesus: Four Gospel Writers, Four Unique Perspectives, Four Personal Encounters, One Complete Picture (Nampa, Idaho: Pacific Press Publ. Assn., 2000), p. 220.

5.   See Siegfried H. Horn, “From Bishop Ussher to Edwin R. Thiele,” Andrews University Seminary Studies 18 (Spring 1980):37-49; Edwin R. Thiele, “The Chronology of the Hebrew Kings,” Adventist Review (May 17, 1984), pp. 3-5.

6.   See Ellen G. White, Gospel Workers (Washington, D.C.: Review and Herald Publ. Assn., 1948), p. 312.

7.   Seventh-day Adventists Believe: A Biblical Exposition of 27 Fundamental Doctrines (Washington, D.C.: Ministerial Association of the General Conference of Seventh-day Adventists, 1988), p. 14.

8.   Alberto R. Timm, “Understanding Inspiration: The Symphonic and Wholistic Nature of Scripture,” Ministry (August 1999), p. 14.

9.   T. H. Jemison, Christian Beliefs: Fundamental Biblical Teachings for Seventh-day Adventist College Classes (Mountain View, Calif.: Pacific Press Publ. Assn., 1959), p. 17.


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