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A religião sempre perde?

Sempre que a religião e a ciência disputam alguma questão de fato, a religião perde. Esse é o ponto de vista comum. A implicação é que a religião nunca deveria fazer reivindicações factuais, por não ter contato com a realidade. Essa posição é apoiada por apelos à Física de Galileu, à Geologia de Hutton e Lyell, à Biologia de Darwin e à Psicologia de Freud e outros. Argumenta-se que a religião, sobretudo a religião do sobrenatural, sempre perdeu no passado e sempre perderá no futuro. Deveríamos abandoná-la ou, pelo menos, adotar uma versão liberal que não apresente reivindicações improváveis.

Para algumas religiões tal asserção é irrelevante, por não fazer asseverações a respeito do Universo físico. Para o cristianismo bíblico, porém, essa assertiva seria fatal. Como poderíamos falar acerca da criação do mundo e subseqüente Queda, do Êxodo, da ressurreição de Jesus e Sua prometida Segunda Vinda como matérias de fato? Removidos esses parâmetros, o cristianismo entra em colapso.

Entretanto, existem vários problemas com a afirmação de que “a religião sempre perde”. Em primeiro lugar, estritamente falando, a disputa real não ocorre entre ciência e religião; existem cientistas do lado “religioso” e teólogos do lado “científico”. A verdadeira contenda ocorre entre o naturalismo e o sobrenaturalismo, entre aqueles que crêem que o Universo é auto-suficiente e nunca recebe interferências externas, e aqueles que entendem que Deus pode, e por vezes realiza, mudanças no curso natural dos eventos.

Sendo assim, o caso Galileu não se alinha com os demais exemplos. Ambos os lados compartilham uma cosmovisão supernaturalística. A única questão teológica é se os eventos incidentais da Bíblia deveriam ser tratados como ontologicamente (realmente) corretos, ou apenas como fenomenologicamente (aparentemente) corretos, e também a questão da autoridade da Igreja Católica em geral. O caso não envolve a autoridade do papa falando “ex cathedra”.

A proposição de que a religião nem sempre perde é verdadeira, embora trivial. A ciência nunca consegue provar completamente que algo é errado. Em ciência, mesmo quando uma teoria parece estar muito mais avançada que outra, sempre existe a possibilidade de que evidências adicionais venham a favorecer a teoria hoje fora de moda. Podemos argumentar que uma teoria fez predições acuradas. Mas não podemos cientificamente saber com absoluta certeza que determinada teoria é verdadeira.

Assim, vamos reformular a proposição de modo a atribuir-lhe maior conteúdo empírico. Hipóteses científicas e históricas, compatíveis ou provenientes da filosofia supernaturalística, por vezes apresentam um volume consideravelmente maior de apoio empírico do que hipóteses compistica ou originárias da filosofia naturalística. Mais importante ainda, esse apoio tem em vários casos aumentado substancialmente com o passar do tempo.

Exemplos históricos

No domínio da história, uma refutação exemplar ao argumento de “a religião sempre perde” é a confiabilidade da cronologia dos livros bíblicos de Reis e Crônicas. Durante longo tempo os céticos acreditaram que a cronologia “bíblica” não existia, e que as confusas peças cronológicas efetivamente existentes eram incompatíveis com a cronologia “real”, secular.1 Depois de Thiele,2 a cronologia de Reis e Crônicas passou a ser vista como coerente e capaz de ser corretiva à cronologia secular.3 A abordagem bíblica venceu, ou pelo menos demonstrou-se muito melhor para a explanação dos dados. A religião não perdeu nesse caso e sob esse aspecto parece improvável que venha a perder no futuro.

Outra refutação exemplar é o livro de Daniel. Os céticos originalmente declaravam que Belsazar jamais existira, que a cronologia era desesperadamente confusa, e que uma vez que todo o livro constituía ficção, não fazia sentido procurar referidas pessoas na história.4

O tempo obrigou a uma mudança nessa visão histórica. Belsazar não apenas existiu, como veio a ser o príncipe coroado (também considerado rei na linguagem hebraica) capaz de oferecer apenas o terceiro posto na hierarquia do reino. A cronologia de Nabucodonosor, levando os cativos de Jerusalém, veio a demonstrar-se precisamente correta. Talvez o mais interessante é que os nomes de Daniel5 e seus três amigos6 foram encontrados em documentos babilônicos. Isso não significa que todas as declarações do livro de Daniel tenham sido confirmadas. A identidade de Dario, o Medo, ainda apresenta dúvidas (embora não tenhamos eliminado todos os candidatos). Mas a argumentação em favor da historicidade de Daniel hoje se encontra claramente em melhor posição do que no passado. A religião está vencendo aqui.

Exemplos científicos

O mesmo pode ser dito a respeito da ciência. Durante mais de um século os adventistas defenderam, com base na inspiração, o ponto de vista de que o tabaco representa “um lento, insidioso, porém maligno veneno”.7 No tempo em que isso foi escrito, o ponto de vista não foi aceito pela comunidade científica, mas ao longo dos últimos 50 anos, tornou-se massacrante a evidência de que as hipóteses originalmente associadas à religião estavam corretas. Aqui a religião não perdeu. A mesma autora falou em favor de uma dieta vegetariana, e as evidências prosseguem crescendo em favor dessa opção.

Existem também casos diretamente relevantes na controvérsia criação-evolução. O primeiro exemplo encontra-se na Cosmologia. Porventura o Universo se estende por todo um passado, indefinido no tempo, ou existe um limite finito de tempo para ele? A maioria dos cientistas apóia fortemente a primeira hipótese, muitas vezes com preconceito categoricamente anti-sobrenatural como explicação para a sua preferência.8 Essa idéia constituiu a parte maior das objeções contra a cosmologia do Big Bang. Se o Universo teve um princípio, pelo menos remanesce a sugestão de que foi necessário um Criador. O desejo de proteger um Universo eterno foi tão grande que, ao assim proceder, Einstein cometeu aquilo que ele mesmo mais tarde identificou como seu maior erro,9 introduzindo uma constante cosmológica na equação que expressa o Universo, de modo a mantê-lo grosseiramente estático. Entretanto, o peso da evidência encontra-se agora solidamente por trás do conceito de que o Universo teve um começo. A religião não está perdendo aqui.

Outro exemplo é a pretensa existência de órgãos vestigiais. Desde Darwin, os órgãos vestigiais têm sido usados para argumentar contra o projeto e, portanto, contra o Projetista. Na clássica exposição, Wiedersheim10 listou mais de 150 estruturas por ele consideradas vestigiais. Ele foi cuidadoso em observar que algumas delas, tais como as glândulas tiróide e supra-renais, provavelmente possuíssem alguma função, caso em que não deveriam ser consideradas verdadeiramente vestigiais; e que esse poderia ser o caso de outros órgãos. Alguns de seus seguidores, contudo, não tiveram a mesma precaução, de modo que não era incomum que órgãos como o timo, a hipófise e o apêndice fossem descritos como completamente inúteis.11 A ausência de cautela seria necessária se os órgãos vestigiais devessem ser usados contra os que criam no projeto, pois se alguma função lhes fosse atribuída, sua existência num organismo projetado não contaria como evidência contra o Projetista.12 Contudo, essa falta de prudência demonstrou-se uma idéia péssima, pois investigações adicionais têm encontrado funções razoáveis para todas essas estruturas, destruindo, por vezes dramaticamente, os argumentos contrários ao projeto. Poder-se-ia argumentar que, nesse caso, o preconceito anti-sobrenatural efetivamente atuou em detrimento da ciência, provocando a tendência de levar os cientistas a não investigarem possíveis funções para uma estrutura, pelo fato de que seu preconceito naturalístico sugeria inexistência de função.

Poder-se-ia argumentar, adicionalmente, que o preconceito anti-sobrenatural efetivamente matou pessoas. Embora o baço não estivesse na lista de Wiedersheim, quando ingressei na faculdade de medicina comumente se descrevia esse órgão como praticamente inútil e que poderíamos viver melhor sem ele, uma vez que tendia a sangrar quando danificado. Argumentava-se que seu único uso era demonstrar que humanos e caninos compartilhavam um ancestral comum. Nos cães o baço armazena sangue para uma autotransfusão em caso de sangramento. Como resultado, quando o órgão sofria alguma lesão, via de regra era removido sem qualquer esforço para preservar-lhe a função. Somente mais tarde tornou-se evidente que a ausência do baço predispunha grandemente a pessoa a infecções por pneumococos. O procedimento cirúrgico hoje é preservar a função do baço sempre que possível, quer através da reparação do próprio órgão, quer deixando-lhe pequenas porções no abdômen, esperando que elas venham juntar-se e manter a função.

Pode-se argumentar que os crentes no naturalismo deveriam ter sabido melhor das coisas. Qualquer órgão verdadeiramente vestigial deveria perder-se por completo, e isso de forma bastante rápida. Mas se admitissem isso, os proponentes do naturalismo ficariam privados de um de seus argumentos favoritos.13 Aparentemente, a necessidade de desacreditar os criacionistas impediu uma avaliação imparcial da evidência e da teoria.

A história repetiu-se com a controvérsia do “DNA-lixo”. Quando o DNA foi descoberto, muitos evolucionistas supuseram que existiam no genoma de vários organismos, incluindo humanos, vastas quantidades totalmente inúteis de DNA. Conforme observado por Standish,14 eles talvez estivessem ignorando a teoria da evolução nesse seu preconceito anti-sobrenatural. Permanece, porém, o ponto de que os defensores do sobrenaturalismo geralmente efetuaram melhores predições a respeito da extensão do “DNA-lixo”, e dessa forma o preconceito anti-sobrenatural efetivamente bloqueou a pesquisa (o inverso daquilo que usualmente se afirma).

Crescimento na compreensão

Isso traz à baila outro ponto importante. Uma das razões pelas quais se pretende que a “ciência” (naturalismo) não perde, é porque ela abraça achados que originalmente se pensava fossem favoráveis à “religião” (sobrenaturalismo). Assim, a temporalidade do Universo e outras idéias como o dano causado pelo tabaco são simplesmente incorporados ao modelo naturalístico, e o moderno crente do naturalismo muitas vezes não se apercebe dos tons religiosos das controvérsias anteriores. O tópico passa a ser visto simplesmente como mais um exemplo do firme avanço da ciência.

Contudo, nem sempre a mesma flexibilidade tem sido assegurada à religião. Por exemplo, a maioria dos teólogos incorporou uma visão heliocêntrica do sistema solar à sua teologia. Mas os crentes do naturalismo não permitem que os teólogos se esqueçam de que, num determinado tempo, a maioria dos cristãos15 discordava da teoria heliocêntrica, e que a Igreja Católica dissentiu com força suficiente como para obrigar Galileu a renegar e banir seus livros, uma ação que ela tem sido forçada a repudiar. Aqui a igreja estava em erro. Mas se for possível considerar o cristianismo atual como responsável pelos equívocos da maioria de seus predecessores, também se deve permitir que o naturalismo seja considerado responsável pelos erros da maioria de seus antecessores.

Isso nos conduz ao último ponto. A razão para utilizar o argumento de que “a religião sempre perde”, é evitar que se tenha de lidar com vários assuntos nos quais a visão sobrenaturalista aparentemente está vencendo no presente; e onde ela vence, o naturalismo estará morto. O naturalismo pode sobreviver aos números de Reis e Crônicas ou à toxicidade do tabaco, ou mesmo (sob a forma de deísmo) ao Big Bang. Mas o naturalismo não consegue sobreviver sem uma explanação naturalística da origem da vida. Mas tal explicação não existe, nem mesmo uma que seja remotamente plausível. Quanto mais aprendemos, pior se apresenta a situação para o naturalismo. Ele o reconhece implicitamente. A melhor evidência disso é a insistência na origem monofilética da vida (isto é, todas as espécies descendem de uma mesma forma original). A despeito da evidência em favor da explosão cambriana16 e de diferentes códigos genéticos para alguns organismos (p. ex., o paramécio), os crentes do naturalismo continuam insistindo em que todos os organismos da Terra compartilham um ancestral comum. Se eles realmente cressem que foi fácil iniciar a vida, simplesmente aceitariam a hipótese de que ela teve início várias vezes. O fato de se aferrarem à hipótese da origem monofilética da vida testifica que implicitamente reconhecem a dificuldade de conhecer seu início, mesmo uma única vez, quanto mais tantas vezes.

Mas os defensores do naturalismo acham-se absolutamente comprometidos com a origem não-sobrenatural da vida. Uma idéia quanto ao vigor desse comprometimento pode ser obtida de uma passagem excelente (e acurada) do livro de Robert Shapiro, intitulado “Origins: A Skeptic’s Guide to the Origin of Life on Earth”.17 Nessa obra ele aponta as falhas das várias teorias, optando finalmente pela teoria de pequenos peptídeos não-modernos, como sendo a menos problemática. Mas à página 130, apresenta seu próprio preconceito: “Poderá chegar no futuro, o dia em que todos os experimentos químicos razoáveis realizados para descobrir a origem da vida venham a demonstrar-se inequivocamente um fracasso. Além disso, novas evidências geológicas poderão indicar o aparecimento súbito da vida sobre a Terra. Finalmente, talvez tenhamos explorado o Universo sem encontrar traços de vida ou processos capazes de conduzir a ela em qualquer parte. Nesse caso, alguns cientistas poderiam decidir volver-se para a religião em busca da resposta. Outros, contudo, inclusive eu mesmo, tentariam escolher as explanações científicas sobreviventes, menos prováveis, na esperança de selecionar uma que fosse um pouco mais provável que as remanescentes”.

Assim, o naturalismo requer uma defesa contra o óbvio. A melhor defesa é: “Até agora nunca perdemos. Você sempre perderá se esperar o tempo suficiente”. No caso da origem da vida, parece que o naturalismo já teria perdido há muito tempo, se seus defensores não se houvessem recusado a reconhecer a derrota.

O único problema com a defesa da idéia de que “a religião sempre perde”, é que ela não é verdadeira; se a atual tendência da pesquisa prosseguir, ela certamente não será verossímil. Tal declaração deveria ser reconhecida como aquilo que realmente é: uma declaração de crença que está em desacordo com as lições observáveis da história e da ciência. A religião nem sempre perde.18

Paul Giem (M.D. pela Loma Linda University) é médico emergencial atuante na Califórnia. Suas pesquisas eruditas incluem a interface entre ciência, religião e história. Escreveu um livro nessa área, Scientific Theology, que se encontra disponível no site http://www.scientifictheology.com. Os contatos com o autor podem ser feitos pelo e-mail paulgiem@yahoo.com.

REFERÊNCIAS

1. Edwin Thiele, The Mysterious Numbers of the Hebrew Kings, 3a ed. (Grand Rapids, Mich: Zondervan, 1983, p. 12) dá muitos exemplos, includindo Heinrich Ewald (The History of Israel, London, 1876), Julius Wellhausen (“Die Zeitrechnung des Buchs der Könige seit der Theilung des Reichs”, Jahrbücher für Deutsche Theologie XX:607-40, 1875), e Bernhard Stade (Geschichte des Volkes Israel, Berlin, 1889).

2. The Mysterious Numbers of the Hebrew Kings. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1983.

3. Kenneth A. Strand, “Thiele’s Biblical Chronology as a Corrective for Extrabiblical Dates”, Andrews University Seminary Studies 34 (1996): 295-317.

4. Paul Giem, Scientific Theology (Riverside, Calif: La Sierra University Press, 1977), pp. 98-109, contém uma discussão do problema com referências. Disponível no site http://www.scientifictheology.com.

5. William Shea, “Bel(te)shazzar meets Belshazzar”, Andrews University Seminary Studies 26 (1988) 1:67-81.

6. “Extra-Biblical Texts and the Convocation on the Plain of Dura”, Andrews University Seminary Studies 20 (1982) 1:29-57.

7. Ellen G. White, The Ministry of Healing (Mountain View, Calif.: Pacific Press Publ. Assn., 1905), p. 327. Veja também, Spiritual Gifts (Battle Creek, Mich.: Seventh-day Adventist Publishing Association, 1864 [1945 facsimile]), 4A: 36,37.

8. Robert Jastrow, God and the Astronomers (New York: W. W. Norton and Company, 1978). Embora os defensores do sobrenaturalismo sempre estejam de um lado e os naturalistas de outro, conforme observado por Helge Kragh (Cosmology and Controversy [Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1999], pp. 251-268), ainda assim se observou uma tendência de a pessoa alinhar-se com o lado mais compatível com a sua avaliação do teísmo.

9. Citado, entre outros lugares, em Oxford Reference Online, disponível no site http://www.oxfordreference.com/pages/Sample_Entries__sample_01.html. A referência mais antiga que consegui encontrar, e provavelmente a fonte original, é G. Gamow, My World Line (New York: Viking Press, 1970), p. 44.

10. The Structure of Man: An Index to His Past History, H. & M. Bernard, trans.; G. B. Howes (ed. London: MacMilllan and Co., 1895).

11. Para o apêndice, ver K. R. Miller, Finding Darwin’s God (New York: Cliff Street Books, 1999), pp. 100,101.

12. Para que um argumento anti-sobrenatural tenha êxito, é importante que a estrutura sob consideração não possua função. Não é suficiente que apenas apresente função mínima ou compensada. De outra forma, tais estruturas como os dedos mínimos poderiam ser consideradas desnecessárias, já que existem muito poucas funções que não podem ser executadas igualmente bem por seres humanos que perderam seus dedos mínimos, e que ainda assim parece irrazoável pretender que eles não tenham sido projetados.

13. Um argumento tal é tão atrativo que ainda segue sendo usado. Aparece, por exemplo, em Miller, pp. 100-101.

14. Standish, “Rushing to Judgment: Functionality in Noncoding or ‘Junk’ DNA”, Origins 53 (2002): 7-20. Disponível em http://www.grisda.org/origins/53007.pdf.

15. Nem todos; Philip Melanchthon constituiu exceção.

16. Explosão Cambriana é o nome dado às evidências de que, ao passo que nas rochas pré-cambrianas talvez existam três ou quatro filos (grupos básicos de organismos), dentro de um período muito curto de tempo, a maioria dos modernos filos (e aparentemente muitos filos que morreram) aparece sem qualquer forma intermediária conhecida. Isso não seria de se esperar a partir da teoria evolucionista padrão.

17. (New York: Summit Books, 1986).

18. Uma versão anterior deste artigo foi publicada em Origins 55 (2004): 3-8, available at http://www.grisda.org/origins/55003.pdf.


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